HISTÓRIA ORAL
HISTÓRIA ORAL

 

 

MEMÓRIAS DA MATURA(I)DADE

                                                               Raquel S.Thiago

 

 

 

Ao entardecer, os raios do sol contrastam com as montanhas, num jogo de cores às vezes suave, às vezes vigoroso ..... esse sol cumpriu seu roteiro e agora , no  crepúsculo , deixa rastros da sua grandeza .... da grandeza da matura(i)dade. (RST)

 

  

O Projeto Matura(i)dade nasceu  da  vontade tanto da Instituição como de professores  de levar a extensão universitária a pessoas com mais de cinquenta anos.  Foi foi ao encontro das necessidades de pessoas que olhavam para a Univille como algo distante. A sala de aula, para eles, revelara-se, até então, inatingível.  Este grupo de alunos recebeu ensinamentos valiosos, teve uma gratificante convivência, e nos ajudou a desvelar particularidades dessa Idade que chamam de Terceira.

 

Junto com a Professora Marta Heinzelmann tive oportunidade de conhecer a turma em encontros durante os quais falávamos de história , das  histórias de Joinville , das suas histórias. Na condição de Coordenadora do Laboratório de História Oral da Univille – LHO – e também do Programa Institucional de História Oral – PIHO - entrevistei oito participantes do curso entre 56 e 79 anos, todos migrantes. Tais entrevistas enriqueceram sobremaneira o acervo do LHO e o trabalho do Programa Institucional de História Oral que privilegia a criação de fontes orais. Através dessas entrevistas foi possível captar , nas vozes lembranças, histórias de vida, com ênfase no aspecto “migração”.       Queria saber como e porque vieram para Joinville, como se deu o processo de adaptação no novo espaço, como a cidade os recebeu, e como percebem e se percebem, hoje, na cidade de Joinville. Essas informações não teriam sentido, se não fossem permeadas pelas narrativas das historias das suas vidas. Cada história confere significado à informação, de modo que a resposta de um pode ser a mesma do outro, como: “o curso da matura(i)dade foi uma coisa muito boa ... gostaria de continuar no ano que vem” afirmativa pronunciada pelos oito entrevistados. Mas o processo que os fez sentirem-se identificados com o curso foi diferente. Cada um teve suas história e seus motivos para agruparem-se no Matura(i)dade. Neste primeiro artigo, selecionei três dessas histórias :

 

                           Hoje já estou encontrando pessoas

                                   com quem  troco um aceno (...) .

                                                               Nelson De Marchi

 

Nelson nasceu em Passo Fundo (RS), de onde, ainda jovem, com 21 anos, migrou para o Norte do Paraná. Ali encontrou uma pessoa com quem já havia trabalhado em sua terra natal e recebeu novo convite, isso onze anos depois.

“Então aos 10 anos eu   trabalhava numa serraria com esse senhor e quando eu tinha 21 anos eu me encontrei com ele  no Norte do Paraná, eu trabalhava com caminhão puxando café, então encontrei com ele, ele tinha uma fazendinha de café, então ele falou pra mim: Nelson eu quero que você venha cuidar da minha fazenda. Aí eu falei pra ele:  Mas senhor, eu conheço café na xícara  e as árvores que eu estou vendo aí, e o café que eu estou levando para o IBC ( Instituto Brasileiro do Café) no caminhão, aqui, eu nunca trabalhei numa lavoura. Mas você vai vir, tem um chacreiro aí ao lado, você vai se entrosar com ele, eles vão fazer o serviço. Mas senhor, eu disse, isso aqui precisa de dinheiro, e eu não tenho.  Não, você vai ter dinheiro até debaixo do colchão .

Pra encurtar a história, ele me abriu crédito, me deu procuração de banco, teve muita confiança em mim”.

De transportador de café, Nelson acabou comprando a propriedade. Casou com dona Estela, também natural de Passo Fundo.

“Quando eu fui pra lá (Paraná) eu já conhecia a Estela. Daí, depois eu fiquei lá...eu fui pra lá em 1962 e em 1967 eu casei com ela, ficamos no Paraná até 1976 e daí viemos para Foz do Iguaçu, as primeiras duas filhas nasceram lá, na fazendinha de café. E o menino nasceu em Itaipu. Ficamos treze anos naquele negócio de café. A terra (era) arenosa, então  também ali a gente tinha gado, trabalhou muito e não se divertiu muito, e no fim a gente teve que vender porque, além das geadas, o banco exigia demais. Queria que fosse do jeito deles e não do jeito que a gente sabia que podia pagar e tocar, não é? Então nós vendemos e fomos para Foz do Iguaçu, onde criei meus filhos, tudo..... é muita recordação. Estou até emocionado  (chorando).

Já em 1973, Brasil e Paraguai haviam assinado o Tratado de Itaipu, instrumento legal para o aproveitamento hidrelétrico do Rio Paraná pelos dois países. Em 17 de maio de 1974, foi criada a entidade binacional Itaipu, para gerenciar a construção da usina. O início efetivo das obras ocorreu em janeiro de 1975. Nelson chegou em 1976 e, na Itaipu Brasil, desempenhou diversas atividades, o que lhe confere um lugar privilegiado de testemunha da história dessa fabulosa obra como ele mesmo disse:

“Ali eu trabalhei fazendo o transporte das pessoas, dos visitantes para as obras. Eram três viagens de manhã e três de tarde, a gente trabalhava 12 horas por dia, das 6 da manhã às 6 da tarde. Itaipu eu vi quando não tinha nem um quilo de concreto ali, e saí quando já estava pronta, em 2000, foi uma obra fabulosa, ninguém, ninguém imagina como é que foi aquilo”.

A Usina de Itaipu fez parte da lista das Sete maravilhas do Mundo Moderno, elaborada em 1995 pela revista Popular Mechanics, dos Estados Unidos. Esta lista foi feita com base numa pesquisa realizada pela Associação Norte-Americana de Engenheiros Civis (Asce) entre engenheiros dos mais diversos países. Além de Itaipu, faziam parte da lista: a Ponte Golden Gate (EUA); o Canal do Panamá, que liga o Oceano Atlântico ao Pacífico; o Eurotúnel, que une França e Inglaterra sob o Canal da Mancha; os Projetos do Mar do Norte para o Controle das Águas (Holanda); o Edifício Empire State (EUA); e a Torre da Canadian National (CN Tower) no Canadá.

Além de Itaipu, Nelson testemunhou, também, a construção de Brasília num momento em que o país vibrava com o surto desenvolvimentista decorrente da política de Juscelino Kubitschek, e a construção da nova capital representava o maior símbolo de um futuro promissor. Um clima de esperança e otimismo pairava sobre o país. Nelson viveu este momento e pode-se afirmar que foi um dos inúmeros “construtores de Brasília”, assim como seria, mais tarde de Itaipu.

“É. Eu fui antes com o caminhão de transporte levar tubulação (...) e depois fui para levar duas pessoas que queriam conhecer Brasília, então eles se propuseram a arrumar o frete e pagar uma parte da despesa (...) então era muito divertido, porque a pessoa que mora aqui no Sul, ela não conhecia muita coisa lá, na época, hoje é mais fácil para viajar(...). “Nelson não apenas testemunhou mas  atuou em três épocas de especial importância social, econômica e política do país: no Paraná, em pleno ciclo paranaense do café, na construção de Brasília e em Itaipu .

Migrou para Joinville em busca de aconchego familiar e de um bom lugar para viver. Chegou no ano 2000 e dessa vez testemunhou, em 2001, as comemorações dos  cento e cinquenta anos de fundação da cidade que escolhera para o que se chama autenticamente de “descanso do guerreiro”. Ao lado da mulher, da filha, do genro e da netinha Isabela que ele confessa ter sido o maior motivo da sua decisão por morar em Joinville, Nelson usufrui do seu direito a uma vida agradável, leve, e do privilégio de frequentar o curso do Matura(i)dade, ao lado de Estela .

Mas assim que chegou estranhou um pouco o jeito do joinvilense: “aqui, logo que cheguei, eu fiquei meio assim, porque o povo daqui ( a gente tem que falar a verdade, a gente está aqui para fazer a entrevista ),  não tem aquele sistema que tem por exemplo o Norte do Paraná, ou no Rio Grande do Sul, mesmo, ou no Oeste de Santa Catarina. Eu conheço bem o oeste, o litoral eu conheço bem,  agora. Eu conheci tudo aquilo ali e quando vim pra cá eu fiquei assim, meio estranho,  porque não tinha conhecimento com ninguém, só com minha família e mais um cunhado que mora em Itapema. Então a gente se reunia muito, ia pescar, sabe? Porque o sistema, a gente aqui, ninguém vai na casa um do outro e a gente era acostumado....  eu viajava muito para a casa do meu pai no Rio Grande do Sul e foi passando, mas eu sempre gostei daqui. Não é fácil achar tranquilidade como aqui  aonde a gente mora. Mas no começo foi difícil. Então vivemos assim desse jeito aí e agora já estamos acostumados, e depois que entramos aqui na Univille melhorou mais ainda.

Para Nelson uma das coisas boas de Joinville é o Projeto Matura(i)dade, que, de acordo com seu depoimento chegou na hora certa: “ Eu acho que precisava ampliar mais ainda, porque muitas pessoas da minha idade não tiveram estudo(...) minha esposa, ela vai na terceira idade aqui num posto de saúde que tem aqui no Bom Retiro, então ali perguntaram se ela  queria ir na Univille, que tinha um projeto. Aí eu disse: “então faça logo, não deixa para depois, não!” Estamos torcendo, temos esperança de poder voltar no ano que vem. É muito bom!

Em outra passagem da entrevista, perguntei ao Sr. Nelson se ele, como migrante, achava que o joinvilense tem preconceito em relação às  as pessoas de fora, e ele respondeu:  “eu acho que não é preconceito, acho que é uma criação, um sistema que foi criado, (...) todo lugar tem gente boa e gente ruim. Eles foram criados nesse sistema (...) eu não critico isso. Só achei diferente. E eu acho que a juventude que vem agora já vem com outro sistema, eu já não acho mais nada, porque amanhã ou depois a minha neta (pequena, que mora em Joinville ) já está diferente também (...). Hoje já estou encontrando pessoas  com quem já troco um aceno (...)”.



“ a  gente aprende tanta coisa,

sem  ter necessidade de aprender, porque a gente aprende com prazerIngeborg Martha Förster Bayer .

 

Ingeborg Marta Foster Bayer, a querida Martinha, frequentou o curso em 2006 e parte de 2007. Faleceu em novembro, logo após completar 80 anos. Como Martinha sentia o Curso do Matura(i)dade?

 “(...) é tudo maravilhoso. Gente, eu não queria que acabasse. Achei a turma homogênea e principalmente o corpo docente, soube nos levar, soube nos ensinar. Olha, a gente aprende tanta coisa, sem ter necessidade de aprender, porque a gente aprende com prazer(...)”.  

Martinha, como todos os entrevistados do Grupo Maura(i)dade, é mais uma migrante de Joinville. Nasceu no Rio de Janeiro em 1927. Seus pais eram alemães, da Saxônia. O pai, Otto Föster, chegou no Brasil em 1921 em busca de trabalho, pois a Alemanha pós-primeira guerra mundial passava por dificuldades, inflação e desemprego. Era contabilista e veio trabalhar na Companhia Brasileira de Anilinas, que depois tornou-se a Bayer do Brasil, no Rio de Janeiro. Sua namorada, que ficara na Alemanha  na área de confecção,  veio para o Brasil em 1925.  Casaram-se assim que ela desceu do navio, no Consulado Alemão, no dia 18 de julho .  Em 1927 nascia Ingeborg Martha. Ela fala da sua infância solitária de filha única, da Escola Alemã que frequentou no Rio de Janeiro, da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e dos problemas com o idioma:

“em 1942, o Brasil entrou na guerra, a escola foi fechada, nós não podíamos mais falar alemão e aí a Escola mudou para o Colégio Cruzeiro com o nosso professor de português, que assumiu a diretoria e nós continuamos estudando, mas eu tive que retornar ao curso de admissão(...) para aprender tudo em português. Meu pai foi preso (...) eu fui apedrejada na rua, a minha casa foi apedrejada, minha mãe levou uma pedrada na testa, não feriu, mas o choque foi grande! Ela ficou esquizofrênica .

Em 1950 Martinha casou com Roberto Bayer, de avô alemão e avó suíça, emigrados da Suíça para Santa Catarina, em Itajaí. Em 1953 nasceu Ingrid e em 1956 chegava Richard.  Em 1958 veio o terceiro filho, Rudolf. O casal morou em Belo Horizonte, depois em São Paulo:

“Lá passamos a nossa vida inteira, as crianças estudando, eu trabalhando, porque voltei a trabalhar, dessa vez  na Bayer do Brasil  por causa do idioma”.

Na verdade, a origem e consequentemente o idioma alemão, que dominava, trouxe inúmeros dissabores, mas uma grande vantagem. Seu primeiro emprego fora na White Martins do Rio de Janeiro, em 1947, também por causa do alemão.

A partir de 1982 os três filhos estabeleceram-se em Joinville com suas famílias. Marta veio em 2003 e não teve problemas para acostumar-se. Afinal sua família estava aqui e Joinville tem muito a ver com suas origens.

 “o povo de Joinville é muito mais educado do que o paulista e do carioca, então, nem se fala. O carioca é mais comunicativo, o paulista é mais fechado, o carioca é até um pouquinho metido... mas, tudo bem (...)

Agora Joinville está deixando de ser, um pouco, a cidade das bicicletas, porque quando eu vim aqui as primeiras vezes, em 1979,1980, com o meu caçula, de tarde, aos domingos, eu via aquelas senhoras com um raminho de flores andando de bicicleta para fazer as visitas. Para ir no “kraenzchen”, que elas faziam”.

O kraenzchen ( crochê ), é uma das poucas  tradições germânicas que sobrevive à onda migratória dos últimos anos. Para a historiadora Elly Herkenhoff “ainda está para ser lançada a edição que irá explicar ao eventual pesquisador o que se entende por um crochê joinvilense, o crochê – instituição, o crochê-folclore, o crochê muito nosso que, longe de ser uma simples reunião en petit comitê, representa, antes de mais nada, uma de nossas maneiras mais tradicionais  de cultivar amizades(...)”.

Pois é. Em novembro Martinha se foi, e com ela sua experiência, seu modo de ser, alegre, curiosa, para ela o tempo não passou. Foi-se serenamente, como viveu, contente, nos últimos tempos aqui em Joinville, em merecido repouso ao lado dos filhos e netos, podendo sentir, ainda, uns laivos da cultura germânica que lhe dizia muitas coisas e a identificava. Sua voz permanece conosco, bem guardadinha no Laboratório de História Oral, junto com outras vozes, outras histórias, outras experiências, que merecem ser ouvidas, interpretadas e analisadas para que entendamos um pouco o que somos e o meio em que vivemos.

 

Quando cheguei em São Paulo

minha bagagem era quatro filhos e duas

malas . Lucy del Carmo Merino Sepúlveda

                                                                

Lucy é chilena e chegou no Brasil em 1977, com quatro filhos,  para encontrar-se com o marido que viera alguns meses antes para trabalhar numa empresa de Santo André ( SP).

“Quando cheguei em São Paulo minha bagagem era quatro filhos e duas malas. Foi no tempo do Pinochet. Porque o golpe de Estado já havia acontecido fazia 3 anos e todo mundo pensa que viemos  por causa de problemas políticos na época. Foi e não foi. Como é que eu posso te falar?”

As lembranças de Lucy levam-na para a década de 1970, quando a repressão da ditadura chilena estava no auge. É que em setembro de 1973, o então Chefe das Forças Armadas chilenas, Augusto Pinochet, comandara um golpe militar e derrubara o presidente Allende, o primeiro governo socialista democraticamente eleito da história. Repressão política e desemprego representavam inúmeros problemas para o casal que já aguardava o quarto filho, de modo que não foi difícil optar pelo Brasil onde igualmente vivia-se sob uma ditadura militar, mas pelo menos havia emprego.   

“Depois do golpe eles (seu marido e os colegas) foram muito perseguidos, e a gente teve de sair da cidade de Concepcion, que é minha cidade natal e a de meus pais, e fomos para a cidade de Temuco no sul do Chile que fica a 400 quilômetros, ficamos na fazenda do meu sogro. É que meu marido havia frequentado a faculdade de sociologia e de economia e ali aprendeu tudo que é tipo de marxismo no tempo do Allende. Então o governo, já de Pinochet, avisava via rádio, via televisão, todos os estudantes que estavam para se formar naquele ano para que se apresentassem à Universidade de Concepcion, onde  receberiam  o certificado  de conclusão, o diploma, não é? Mas meu marido tinha sido avisado que a polícia estava esperando na Universidade para prendê-los. Ele estava com medo e avisou os colegas: olha, não vão,  porque tem polícia e estão esperando a gente se  apresentar.... . De muitos deles nunca mais soubemos. Desapareceram.

“Eles foram levados para ilhas em alto mar. Eram levados, isso foi confirmado depois, eram levados de avião, naquelas cisternas de onde jogavam água quando tinha incêndio nas florestas. Abriam as comportas e jogavam os prisioneiros no mar. Hector  salvou-se mas  perdeu o emprego, como posso te explicar? Aquele emprego ele tinha conseguido por meio da Igreja Católica, porque eles sabiam que ele não era comunista,  não estava inscrito no Partido Socialista, nada disso. O que aconteceu? Os patrões dele foram tão intimidados que ele teve que sair da empresa. Depois ele foi  para Santiago, mas vimos que não dava, que as empresas estavam começando a fechar, estavam nacionalizando a empresa americana de cobre e tudo, aí chegou um momento que não tinha mais emprego, e o Brasil pedia mão de obra estrangeira, engraçado, em 1977 eles pediam engenheiro mecânico, pediam médico, pediam muitos profissionais, e já davam o visto de permanência de lá”.

No Brasil onde também tínhamos uma ditadura, mas já num processo de abertura política, sentia-se, ainda, os efeitos do “milagre brasileiro”, quando a economia apresentou expansão extraordinária, em seis anos consecutivos ( 1968-1973). Já a partir de 1974, esse crescimento começou a declinar e em 1981 o país entra em crise profunda. Mas em 1977, quando Lucy e seu marido estabeleceram-se no Brasil, este declínio ainda não se fazia sentir no cotidiano da sociedade. Continuava-se importando mão de obra qualificada, já que as indústrias haviam recebido muitos estímulos e Hector era especialista em termoplástico.

A simpatia pelo Brasil ficou evidente na voz de Lucy, que ao recordar, com um largo sorriso revelou-nos: “para nós foi muito bom, quando chegamos, era tudo barato, entende? No Brasil a gente via fartura, até hoje eu vejo fartura no Brasil, que é um país que eu digo que é minha segunda terra. Eu adoro o povo brasileiro. São Paulo me acolheu de braços abertos. Criamos os filhos primeiro em Santo André e depois em São Bernardo do Campo.”

“Em Santo André eu conheci muitos amigos, eu tive muita dificuldade com o idioma.  Na feira eu não falava, porque como eu não entendia nada do que eles diziam, eu achava que eles também não me entendiam. Só que eu não sabia que eles achavam que eu era muda, até um dia quando eu ia caminhando com meus filhos, com o carrinho de feira e havia um buraco, eu dei um mau jeito, caí, e comecei a falar palavrão, porque eu enfiei o pé no buraco não é? E aí a moça que me atendia, uma japonesa, começou a gritar! “menino, menino,  ela não é muda ! E todo mundo começou a me abraçar. Eles tinham pena de mim. Por conta disso, por algum tempo ganhei ovos e bananas – meus filhos não podiam mais ver banana, de tanto que ganhava. Foi a maneira que o pessoal da feira   encontrou  para consolar uma jovem mãe de família, muda ! “

Em 1990 a família migrou para Joinville. Seu marido havia recebido uma boa proposta de trabalho na área de plásticos.  A mudança faria bem à sua família, com certeza, pois em São Bernardo do Campo, onde moravam, já haviam sido vítimas da violência. “Minha filha foi pega por assaltantes como refém (...). Havia também outra filha de outro chileno, e um menino também (...). Graças a Deus chegou a polícia, quando eles sentiram a sirene  eles soltaram a minha filha e os outros. Só que como eram menores de idade, a polícia soltou, e a gente começou a sentir ameaças, foi quando a gente viu que  começou a ficar perigoso, eu vivia presa dentro de minha própria casa”.

Em Joinville a família sentiu-se mais segura, instalou-se numa casa no alto de um morro, na rua Jaú de onde podia se avistar toda a cidade. Criava cerca de 80 galinhas. “Era tanto ovo... . Quando eu cheguei  em Joinville, o que eu mais gostei, é que me lembrou o Chile, o sul do Chile, Temuco, que é a terra do meu marido, onde morei. Ali muitas casas são em enxaimel como aqui.  Em tudo é muito parecido. O cachorro quente de lá tem chucrute. Porque... depois da guerra chegaram muitos alemães, no sul do Chile tem muitos alemães parecidos com o joinvilense nato, mais fechado. Eles são mais fechados. Mas não são frios. Não falemos a palavra frio, acho que é o jeito de ser. Porque mais tarde eu descobri que depois que você faz uma amizade, é uma amizade profunda, são carinhosos com você”.

Mas nem tudo foi fácil para Lucy e a família. Hector deixou o emprego anterior e tornou-se industrial, tudo ia bem, dois dos filhos trabalhavam na fábrica, Lucy também, era encarregada de muitas coisas, como marketing, vendas, contatos,  etc.. . Uma sucessão de fatos desfavoráveis começaram a acontecer após a entrada de um sócio e a empresa fechou, levando a família a uma situação de imensas dificuldades. Para Lucy foi mais uma oportunidade para aprender com a vida.

“A vida continua, eu me dediquei ao artesanato.  Depois que aconteceu tudo isso, eu que trabalhava nove horas por dia na empresa,  corria muito, de repente parou tudo. Aí fica tu olhando para o céu e diz... meu Deus o que é que eu faço... Até que  um dia eu vi uma apresentação de dança  por um  grupo de idosos do Bom Retiro,  no Festival de Dança, e eu adoro dançar. O grupo faz ginástica, dança, faz dança de rua para a  terceira idade.  Aí eu fui me apresentar e entrei para o grupo. Eu ainda não estou na terceira idade, mas estou me preparando para ela, eu estou com 56 anos idade. Eu tinha que fazer alguma coisa, não podia  ficar parada. Além do grupo de dança eu faço artes plásticas, artesanato, bordo vestido de festa, são coisas que aprendi sozinha, ninguém me ensinou. Então a finalidade era buscar uma recreação para mim e  ganhar algum dinheiro”.

Lucy estava se redimensionado diante da vida, criando mecanismos de re-construção da identidade fragmentada pela ruptura violenta do seu modo de viver não somente em família, mas em sociedade, pois como sempre acontece boa parte das suas “amizades” sumira .

"Então, quando meu marido e meus filhos, que estavam muito deprimidos,  me viram  buscar alternativas, me mexer, a fazer artesanato, a bordar, inventar, aí eles começaram a notar que eles também podiam. Aí meu filho começou a trabalhar como representante comercial e já conseguiu comprar uma moto. Meu  marido dedica-se à gastronomia, que ele sempre gostou e organiza eventos em nossa casa, uma casa que havíamos construído no Bom Retiro,  uma casa  grande e boa, e ainda está conosco. Isso também ajuda no orçamento da família. Mas eu  sou grata  a Deus, a gente arranja forças .Eu já passei por tantas, quando lembro o que eu passei.... o bom disso tudo é que ficamos mais  unidos e nossa qualidade de vida melhorou muito, a gente passou a dar mais valor às pequenas coisas”.

E nesse processo de reconstrução de si mesma, Lucy encontrou o Projeto Matura(i)dade da Univille, foi assídua e entusiasta frequentadora, a ponto de nos conceder um longo relato da sua história de vida. Quando eu perguntei o que havia significado o curso do Matura(i)dade para ela, eis o que me respondeu:

“Ah! Aprender, a gente fica adolescente de novo, a gente se sente útil, aprendi computação, porque eu estava tão feliz, aprendi a Internet, na página do mensager,  aí eu consegui falar com meu irmão, que fazia dez anos que não falava com ele, com minha irmã, no Chile, minha outra irmã do Panamá que faz trinta e dois anos que não vejo, é muito importante, a gente aprendeu coisas novas, fazendo amizades, o que foi  importante para mim, eu sou muito falante”.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Martinha e Nelson chegaram em Joinville “com a vida feita”, aposentados. Joinville para eles representa (ou) um espaço de “repouso do guerreiro”, uma vez na cidade passaram usufruir das benesses da aposentadoria nos limites que suas histórias de vida o permitiram. Lucy chegou em Joinville  ainda jovem, com o marido Hector  e quatro filhos adolescentes. O marido tivera excelente proposta de trabalho, e a confortável situação financeira permitiu a inserção social da família na classe média alta, de modo que de início a vida seguiu suave, entre os naturais estranhamentos e a necessidade de construir um novo elo de pertencimento.

No entanto, um infortúnio nos negócios e a derrocada financeira desatou-lhes os laços sociais talvez ainda não consolidados com o cimento da amizade sincera e duradoura.  Imigrados do Chile, famílias distantes, suas histórias de vida no Brasil foram reconstruídas pelo caminho, primeiro em Santo André ( SP), depois em São Bernardo do Campo (SP) e por fim em Joinville ( SC).

Para Lucy e sua família, Joinville tem sido o lugar do trabalho intenso, das rupturas e da luta pela superação e reatamento de identidades. Para Martha e Nelson o curso Matura(i)dade foi um espaço a mais de identidade, sociabilidade e conhecimento. A necessidade de pertencimento sentida por Martha e Nelson certamente foi mais intensa em Lucy. Afinal, a ruptura do seu estilo de vida fragmentou-lhe a identidade ainda frágil de cidadã joinvilense. O Matura(i)dade para Lucy, então, representou, quem sabe, um entre tantos mecanismos de reconstrução pessoal, social e mesmo familiar. As três histórias de vida narradas, comentadas e analisadas neste trabalho, não teriam sentido para o Projeto Migrantes, se não tivessem fornecido, por meio da contextualização histórica, pistas para conhecermos um pouco mais a Joinville de hoje, a Joinville pós migração .

Passou o tempo em  que se estudava as (i)migrações via estatística , quando migrantes e números tinham a mesma representação. Cada pessoa carrega consigo sua história, suas circunstâncias, que, no todo vão constituindo o tecido social. A narrativa de história de vida, como diz Goodson, não se limita à reconstrução do passado (...), mas à reorganização de experiências anteriores e acumuladas que vão dando sentido e identidade. Nesse aspecto é de especial significado o que nos diz Verena Alberti em seu livro Ouvir Contar: “aprendemos com a narrativa dos nossos entrevistados? Em que  momentos, ou em que entrevistas, nosso ganho é maior do que o de simplesmente conhecer mais uma “versão” do passado?” Para esta autora aprendemos com os entrevistados quando a narrativa vai além do caso particular e nos fornece uma chave para a compreensão da realidade. Este é o nosso intento no Projeto Migrantes .

 

REFERÊNCIAS

 

a)bibliográficas

 

Alberti, Verena. Ouvir Contar – Textos em História Oral. Rio de Janeiro:Editora FGV.2004.

 

Herkenhoff, Elly. Era Uma Vez Um Simples Caminho. Joinville: Fundação Cultural,1987.

 

Ivor Goodson – A Arte de Contar a Própria História – in: Pátio – revista pedagógica, agosto/outubro/2007, n. 43 .

 

 b)meio eletrônico

 

 http://pt.wikipedia.org/wiki/Usina_hidrel%C3%A9trica_de_Itaipu

 

c)fontes orais

 

DE MARCHI, Nelson : depoimento [nov.2006].

Entrevistadora : Raquel S.Thiago

Entrevista concedida para o Projeto Migrantes do Programa Institucional de História Oral. LHO/Univille

 

BAYER, Ingeborg Foster : depoimento [ out.2006]

Entrevistadora: Raquel S.Thiago

Entrevista concedida para o Projeto Migrantes do Programa Institucional de História Oral. LHO/Univille

 

SEPÚLVEDA, Lucy Del Carmo Merino: [nov.2006]

Entrevistadora: Raquel S.Thiago

Entrevista concedida para o Projeto Migrantes do Programa Institucional de História Oral. LHO/Univille

 

 

 

 

 

Memória e historiografia: limites e possibilidades de uma aproximação  

Márcia Mansor D’Alessio

 Revista da ABHO N.4,junho de 2001,p.55

 

RESENHA

Raquel S.Thiago

A autora constrói este valioso texto a partir de um trabalho de entrevistas com historiadores franceses, no qual  saberes históricos são produzidos na oralidade dos depoimentos. O artigo pretende examinar as noções de história, memória e historiografia e observar as interferências  da memória na produção do discurso historiográfico.

 Os objetos de investigação da autora situam-se na dimensão política da história: República, movimentos revolucionários, as Internacionais, Primeira Guerra, socialismo, lideranças socialistas ( principalmente Jean Jaurès ), extrema direita e racismo. Sua visão do político contempla, além das lutas imediatas, o simbólico, o cultural, o cotidiano de classes e grupos populares. Seus textos sobre temas ligados à memória revelam as infinitas possibilidades de abordagem das questões políticas.

Mansor lembra aos momentos das transcrições e as repetições nas entrevistas  “(...) o aspecto prazeroso foi a familiaridade com as falas que a repetição propiciou e a maior percepção dos intervalos, das interjeições, da serenidade, da indignação, enfim, daquilo que está além das palavras e que faz a riqueza da oralidade “

Importante no texto de Mansor é a referência que faz a  Halbwachs  no seu clássico “Memória Coletiva” (1990). Este autor marca a diferença entre os dois fenômenos e tece críticas para a história da sua época. Para ele, a história empobrece o real “assemelha-se a um cemitério”pois se atém à sucessão de datas e fatos . A esta história ele chama de história escrita , para diferenciar de história vivida, à qual entrelaça a memória coletiva . Para H. é sobre a história vivida que se constrói memória e a história vivida é a fusão entre o mundo interior individual e a sociedade.  Opõe a memória  à história –conhecimento ( escrita ). Diz  Manson que, embora a oposição permaneça, memória e história-conhecimento estão mais próximas, a primeira em colaboração com a segunda.

Comentando Halbwacs  a autora diz: história-vida e memória se confundem, pois a vivência que produz a história produz a matéria-prima das lembranças. Nos termos de Halbwachs podemos  falar de memória coletiva e memória histórica . O que distingue uma da outra? Talvez possamos dizer que a memória histórica é aquela que tem compromisso com a veracidade dos fatos lembrados, ao contrário  da memória coletiva que relembra arbitrariamente (Nora,1984).  Para Jean Duvignaud: memória histórica supõe a reconstrução dos dados fornecidos pelo presente da vida social projetada no passado reinventado; memória coletiva é “aquela que recompõe  magicamente o passado”( Duvignaud,1990).Quando a autora problematiza  sobre “Mídia e História” ( )  , faz o seguinte comentário: “ O destino da memória é ditado pela história vivida. O ritmo do tempo vivido preserva-a ou descarta-a. Também seu conceito ( de memória) é historicamente  determinado: cada época a concebe de acordo com seu próprio perfil”. Cita igualmente   Michel Vovelle para o qual  “(...) esta memória, longe de ser um patrimônio inerte ou um tesouro que se deva preservar como o fizeram eruditos e folcloristas do século passado, é também e sobretudo, uma recriação contínua , muito mais flexível  do que se acreditou, reflexo da imagem que cada período cria do passado(...)” .  

Mansor vai buscar em Madeleine Rebérioux ,  um conceito de da memória histórica : uma reinvenção do passado a partir da reconstrução do presente estimulada pela vivência da pessoa que relembra , confirmando as afirmações de Jean Duvignaud . Tomamos do passado aquilo que nos parece útil às lutas em que estamos engajados no mundo onde vivemos “ de M. Reberioux .

Para a autora as lembranças introduzem a  subjetividade em seus textos ( falando dos historiadores que entrevistou) flexibilizando discursos e liberando-os da estabilidade que o método da escrita da história exige. (...) suas sensibilidades (...) misturam-se , sem tensões às reflexões  objetivas acumuladas em vidas inteiras de pesquisas rigidamente apoiadas em documentos e métodos.

Aborda, ainda, Mansor,  com muita pertinência  a  diferença entre o real e a representação, citando  Vilar que  exemplifica com o episódio de Guernica : para os bascos, uma guerra, um massacre e seus desdobramentos , na localidade. Para os alunos de Vilar, quando ele perguntou : Para vocês o que é Guernica? – eles responderam rapidamente : Guernica é um quadro. Ainda com o objetivo de mostrar a diferença entre o real e a representação, relembra uma anedota: Conta-se que Picasso, durante a ocupação alemã em Paris foi interrogado por um oficial alemão que lhe perguntou: “Foi você que fez Guernica? Ao que ele respondeu: Não, foi você !”

Finalmente Mansor   relata o que sua experiência  -  entrevistou  três historiadores, levantando problemáticas envolvendo Memória e Historiografia : destaca em primeiro lugar o que ela chama de “fator geracional” , para se referir às diferenças de gerações entre os entrevistados. Vilar é de  uma geração anterior à dos outros dois entrevistados. Em segundo, aponta as modificações  introduzidas pela oralidade no discurso do conhecimento: a exposição oral  de um tema retira o autor  do isolamento da escrita. A presença do interlocutor passa a fazer parte da composição do texto. Ainda que em silêncio, o outro é uma escuta. Finalmente destaca  que é importante perceber o papel do entrevistador ; este não quer ler um texto, quer ouvir, não quer a letra, quer a fala. Pretende conhecer verdades, mas também sondar  emoções.