ORGANIZAÇÃO SOCIAL , ETNICIDADE E POLÍTICA DOS IMIGRANTES DA COLÔNIA D. FRANCISCA NA FASE PIONEIRA (1851 – 1862)
Raquel S.Thiago *
“ Nós queremos emigrar . Esta é a grande frase com que se decidem os destinos de inúmeras pessoas. Quantos antes de nós e quantos, após, selaram com isto seu destino? Quando a idéia de emigrar começa a criar raízes, é como tiririca, que é difícil de extirpar”
Rodowicz, 1853[1]
Introdução - O estudo da imigração germânica do século XIX e o processo de relocalização dos imigrantes em terras brasileiras, implica em tentar compreender os mecanismos da organização social e de construção da etnicidade. Neste particular, reporto-me a Paul Little que, ao explorar a área teórica e etnográfica das (i)migrações, localiza-a na interseção de três conceitos: espaço, memória e migração . Diz ele:
“ Cada povo deslocado procura de uma ou de outra forma criar sua relocalização no espaço. O processo de criar um espaço novo torna-se primordial, e se dá em parte pela manipulação múltipla e complexa coletiva no processo de ajustamento ao novo local"[2].
Tal pensamento reforçou minhas convicções de que seria possível realizar um estudo que contemplasse o “espaço construído” pelos imigrantes pioneiros da Colônia D.Francisca no curso da sua relocalização e o papel político dos sujeitos na manipulação da memória coletiva no processo de invenção/criação da etnicidade [3].
No estudo acerca da dinâmica política e social que teriam fundamentado a organização de caráter étnico dos imigrantes pioneiros da Colônia D.Franicisca sigo a proposta de Tramontini [4], que define a constituição de uma “comunidade étnica” ou a organização social com base étinica como uma fenômeno político. Esse autor prioriza o termo “organização social com base étnica” em detrimento de “identidade étnica “ , pois para ele o grupo imigrante estudado ainda não erigira uma fala um discurso ou imagem de/sobre si próprio nem atribuíra legitimidades .
Tramontini ressalta a necessidade de reavaliação dos conflitos como parte dinâmica do projeto de colonização e como situação de organização social , em que a etnicidade assume clara afirmação social e política . Para ele, em contraposição a Willens, Amado e Roche,[5] a identidade étnica não se afirma isoladamente, mas surge da relação. Propõe, então, a hipótese do relacionamento, da visualidades das diferenças, dos conflitos e dos intercâmbios na formação da “ comunidade étnica “.
Neste trabalho, as situações de conflito restringem-se àqueles ocorridos no cotidiano da nascente colônia, já que no período estudado ainda não se estabelecera uma situação conflituosa com as instituições brasileiras. A Colônia estava, ainda, na fase dos relacionamentos internos entre diferentes etnias .
No cuidado com a coerência conceitual , sigo com Tramontini no emprego da concepção “weberiana” de grupo étnico.
No cuidado com a coerência conceitual, sigo com o mesmo autor, emprego na concepção “weberiana” de grupo étnico:
“a crença na afinidade de origem – seja objetivamente fundada ou não – pode ter conseqüências importantes particularmente para a formação de comunidades políticas . Como não se trata de clãs, chamaremos grupos étnicos aqueles grupos humanos que em virtude de semelhanças no habitus externo ou nos costumes ou em ambos, ou em virtude de lembranças de colonização e migração, nutrem uma crença subjetiva na procedência comum, de tal modo que esta se torna importante para a propagação de relações comunitárias, sendo indiferente se existe ou não uma comunidade de sangue efetiva”. A comunhão ‘étnica’ distingue-se da ‘comunidade de clã’ pelo fato de aquela ser apenas produto de um ‘sentimento de comunidade ‘mas apenas um elemento que facilita relações comunitárias’. Fomenta relações comunitárias de naturezas diversas, mas sobretudo, conforme ensina a experiência, as políticas”.
Os grupos de imigrantes pioneiros da Colônia D. Francisca. Estes não eram homogêneos: estavam divididos por sua origem regional, dialeto, classe, política e religião. Assim, embates internos sobre a natureza da etnicidade emergente do grupo eram inevitáveis. Nesse caso, Conzen sugere a existência da necessidade de se reinventar tradições, cujos propósitos incluíam providenciar símbolos e ‘slogans’ que pudessem unificar o grupo, apesar de tais diferenças.[6]
Para o estudo proposto, selecionei três marcos do início da vida colonial na D.Francisca : o primeiro deles é a chegada do navio “Gloriosa” em setembro de 1851 que, ao trazer boa parte de emigrantes cultos e abastados, promoveu transformações relevantes no cotidiano da Colônia; o segundo foi o processo que estabeleceu a “Comuna da Colônia” (Coloniegemeinde ) entre 1851 e 1856, como resultado da necessidade de um instrumento normativo na vida colonial; o terceiro marco refere-se à chegada de Ottokar Doerffel em 1854 e a fundação , em 1862, do “Kolonie Zeitung”.
Os descaminhos do projeto de colonização . Fundada em 1851, a Colônia D.Francisca foi um empreendimento da Companhia Colonizadora de Hamburgo, constituída por empresários interessados nos lucros decorrentes do transporte de passageiros e da colonização em terras brasileiras. Se na Alemanha a conjuntura urbana e rural de meados do século XIX apontava para a emigração de parte de seu povo , num esforço de desafogá-la da pressão social advinda das péssimas condições de vida dos trabalhadores rurais e urbanos, no Brasil o interesse residia em suprir de braços as lavouras de café na Região Sudeste e povoar regiões estratégicas do Sul. Como resultado da união dos interesses das duas nações, surgiu a Colônia D.Francisca, de caráter particular, empresarial, com a finalidade de assentar imigrantes em espaços desocupados do Sul do Brasil em regime de pequena propriedade.
Trazidos pela Barca Colón no início de março de 1851, os 118 imigrantes germânicos de diferentes regiões da Alemanha e Suíça, principalmente, mais os 74 noruegueses desembarcados da Sumaca Glória dos Anjos, iniciaram o povoamento efetivo da Colônia. Fundada apenas um ano após à vizinha Colônia Dr. Blumenau, D.Francisca estava destinada às atividades agrícolas. Esta primeira leva de imigrantes compunha-se principalmente pessoas pobres das zonas rurais e urbanas. Era essa a lógica inicial da política social de emigração apregoada na Alemanha, ou seja, incentivar a emigração dos mais pobres, para diminuir a oferta da mão-de-obra e facilitar a vida daqueles que ficavam, desafogando as pressões sociais.
Os empresários hamburgueses planejaram estabelecer na D.Francisca uma grande colônia agrícola da América do Sul, e ao mesmo tempo um entreposto da Alemanha de produtos manufaturados , via porto de São Francisco do Sul. Em contrapartida, produtos agrícolas brasileiros seriam negociados com o Império Alemão. Alguns grupos de empresários arquitetavam planos a longo prazo, de formar, em terras do Sul do Brasil, um significativo mercado consumidor de produtos industrializados alemães. Tais consumidores seriam os imigrantes e seus descendentes.
No entanto, constatou-se que a agricultura não era o forte de grande parte daqueles que se inscreviam como emigrantes na condição de lavradores. Faziam-no apenas no intuito de serem aceitos pela Sociedade Colonizadora. Como observou Magalhães[7] ao pesquisar a documentação sobre os primeiros imigrantes da Colônia D. Francisca, era significativa a existência de pelo menos quarenta profissões vinculadas ao meio urbano. “Marceneiros, alfaiates, sapateiros, mecânicos, açougueiros, cervejeiros, moleiros, padeiros, funileiros, tipógrafos e outros são atividades que exercem, entre 1852 e 1864, mais da metade dos imigrantes dessa colônia”.
Compreende-se, pois, que o projeto agrícola de exportação, frustrou-se quando foi constatado, já de início, que a maioria dos colonos não trazia a experiência necessária para a agricultura dos trópicos, ao ponto de Rodowicz observar que a Sociedade Colonizadora deveria empregar parte dos seus recursos em diversas culturas, com a finalidade de ensinarem aos colonos o processo correto de cada uma delas pois, na sua opinião, a maioria dos colonos ainda se achava na estaca zero, após um ano de Colônia. E se perguntava angustiado: “onde obter informações seguras, quando, sem experiência própria, todos andam às apalpadelas, no escuro?”[8]
A tradição artesanal trazida por grande parte dos imigrantes, a inexperiência no trato dos produtos agrícolas brasileiros, mais as dificuldades apresentadas pelo terreno ainda coberto pela mata virgem, além da umidade do solo, faziam com que o trabalho da terra fosse desviado, de boa vontade a segundo plano por boa parte dos colonos. Eis o depoimento do imigrante Christian Herrmann, contido numa extensa carta enviadas aos parentes suíços em 1851:
“(...) como colono recém-chegado, somente plantei até agora algumas batatas, feijão e cenouras. Fiquei doente por algum tempo e para não perder tempo, montei defronte à minha morada um tôrno e um banco de marceneiro e atendi todos os serviços do ramo da minha profissão. Oh, se eu tivesse comigo as ferramentas que tinha na Suíça, como ganharia dinheiro! (...)
Se estancássemos a história neste início de colonização, certamente o espaço onde hoje se situa cidade de Joinville, não seria o mesmo. A Colônia, estava fadada ao fracasso. Ao examinar a lista dos imigrantes da Barca Colón, constatei que, dos 118 que desembarcaram, 19 fugiram ou foram embora para Curitiba e Paranaguá, 20 morreram, entre 1851 e 1855 e 3 foram mandados embora.
Deduz-se pois, que, inicialmente, na colônia permaneceram os mais pobres de um lado, e de outro os abastados ou meio abastados, membros da administração da colônia, técnicos, como agrimensores, engenheiros, o médico, o pastor, o padre, o farmacêutico e, por fim, aqueles poucos que, apesar de poderem optar por uma vida melhor em cidades grandes, acreditavam no empreendimento colonizador e num futuro próspero .
O GLORIOSA
A intenção era brilhar e ostentar em todas as direções , fazer da D.Francisca (...) a principal colônia do reino, de Joinville o centro da inteligência da vida social . ( Von Tschudi)
A chegada do navio “Gloriosa”, em 27 de setembro de 1851, promoveu o aparecimento de fatores que fizeram emergir a necessidade de mecanismos que garantissem alguma ordem na colônia. Os 77 imigrantes do Gloriosa elevaram a população da Colônia de 260 para 337 pessoas. Ao analisar a lista dos imigrantes deste navio , verifiquei que entre estes havia significativo grupo de pessoas abastadas, de status social e cultural diferenciado: três militares, um marceneiro, um médico, três naturalistas, dois professores , um teólogo, um candidato a teólogo, um comerciante , dois açougueiros e um engenheiro -geógrafo militar[9].
No Gloriosa chegaram, também, quatro acionistas da Sociedade Colonizadora, entre eles o novo Inspetor da Colônia Dr. Johan Adolph Haltenhoff, sua mulher Dorette e as três filhas, Marie, Anna e Louise. Na colônia, Anna se casou com Léonce Aubé, francês e procurador do Príncipe de Joinville; Marie, com Friedrich Heeren, acionista da Sociedade Colonizadora de Hamburgo e parente do Senador Christian Mathias Schroeder, principal acionista da empresa ; Louise se casou com Otto Niemeyer, militar do dissolvido exército de Schleswig-Holstein e igualmente acionista da Sociedade Colonizadora. Tais relações acabaram formando um verdadeiro clã familiar no domínio dos negócios da colonização.
Este grupo que Tchudi[10] chamou de “oligárquica falange de concunhados”, no seu dizer,
“formou um conluio, sob a direção de um só homem ( Aubé) (...) e cujo domínio, durante vários anos, não trouxe benefícios à Colônia. A intenção era brilhar e ostentar em todas as direções, fazer da D.Francisca, a todo custo, a principal colônia do reino, de Joinville o centro da inteligência e vida social, empenhando-se muito mais nesse sentido do que em atender aos reais interesses da Colônia . (...)
Prossegue Tschudi:
“Asseguram-me com toda a seriedade que, nos primeiros anos era preferível emprestar dinheiro a um colono para a compra de um fraque do que para obtenção de um moinho de mandioca . Mesmo que não tomemos esta informação ao pé da letra, mas como ironia, ela espelha bem o rumo que se tomou em D.Francisca. O fato é que a vida em Joinville era muito alegre e animada, que ali não faltavam bailes e diversões e que se dava muito mais importância ao brilho das aparências do que seria sensato em uma colônia agrícola”.
Os bailes, por ele observados e regados por bordeaux e champagne e iluminados por velas de estearina , certamente não eram freqüentados pelos mais pobres , tornando visíveis os privilégios . Tudo isso teria trazido insatisfações e conflitos que , no processo , deveriam ser negociados . Essa situação comprometia , em parte, a viabilidade da edificação de uma comunidade distante – um oceano – das suas pátrias. Rosowicz foi um dos primeiros a registrar as transformações do cotidiano da colônia em conseqüência da chegada do “Gloriosa”:
“ (...) a abertura de botequins e salões de bailes começaram a produzir seus efeitos . Excessos noturnos e outros faziam lembrar que, de qualquer forma , era necessário elaborar e estabelecer leis e criar poderes que freassem desordens que estavam aumentando . ( ...) além da existência de reduzido grupo de preguiçosos, relapsos e caloteiros “ . Não há , qualquer espécie de força coercitiva ou coisa semelhante que, reconhecida coletivamente, imponha autoridade “ .[11]
Ficker estabelece ligação desse fato como o advento da relação empregador e empregado , e dos seus desdobramentos , ou seja, a possibilidade de melhor remuneração da mão-de-obra pelos endinheirados aos colonos pobres, em virtude do aumento da população. A escassez de mão-de-obra , naquele momento , aumentava o seu preço , levando-o a concluir que “ o dinheiro na mão do homem do campo aumentava o consumo de álcool aos domingos e dias santificados, de maneira que passavam o dia conversando e bebendo. “ . Não se pode desprezar o fato de que no Gloriosa chegou Gustav Poschaan , o primeiro empreendedor agrícola da Colônia , o que teria criado bom número de empregos . [12]
O Gloriosa , assim como trouxe dinheiro novo, conhecimento e pessoas de nível social mais elevado, trouxe, também, certa dose de sofrimento: uma epidemia de disenteria e tifo intestinal desembarcou com seus passageiros, alastrando-se na Colônia. Não havia, ainda enfermeiros, e o hospital , embora tivesse sido construído, fora ocupado para moradia. . Em apenas 1 mês ( setembro de 1851), faleceram 16 pessoas.
Aumentava , assim , a insegurança dos colonos , já por terem de enfrentar ambiente desconhecido e a ele ter que adaptar-se , já por desconhecerem o português , o que certamente desarmonizava o ambiente colonial . Em junho de 1852 , ânimos exaltados causaram tumulto na Casa de Recepção, onde “houve troca de insultos, sopapos e desentendimentos “ , apesar da existência de um regulamento que, em 7 itens , estabelecia as obrigações e os deveres dos imigrantes durante sua curta permanência na casa. Esta regulamentação teria sido a primeira experiência normativa , a primeira lei sancionada por autoridade na Colônia D.Francisca. [13]
Por outro lado, a Sociedade Colonizadora tentava garantir o sucesso do seu empreendimento e tais episódios impunham negociações entre os imigrantes comuns e entre estes e aqueles que ocupavam um lugar mais alto na hierarquia econômica e social , os administradores da colônia e suas famílias . Somente mais tarde surgiram claramente os conflitos provenientes da necessidade de adequação e cumprimento às normas do sistema jurídico econômico e político brasileiro.
A COMUNA DA COLÔNIA
“ Assim terminamos na Europa,
assim começaremos no Brasil”
( Rodowicz)
Em novembro de 1851, a Direção da Colônia tentou fundar uma “comuna” que fizesse valer os regulamentos pelos quais deveria pautar-se a vida comunal.. Um projeto foi apresentado aos colonos, mas o debate acabou tomando um rumo indesejado pelos diretores. Conforme comenta Rodowicz ,
“ uns exigiam o exame dos documentos , outros pediam cópia , ainda outros alegavam que tanto tempo já tendo passado sem estes estatutos, eram eles dispensáveis (....) A reunião dissolveu-se sem que os estatutos fossem aprovados. A idéia da criação de uma comuna voltou ao marco zero . Discursos e escrivinhações (sic) somente , nada de ação” . E se alguma vez se chegar a ela, então sempre dentro daquela velha forma , indiferente, se o pé cabe ou não lá dentro. Assim terminamos na Europa, assim começaremos no Brasil [14] .
Rodowicz estava convencido que o sonhada “Nova Alemanha” incluía heranças indesejáveis da velha pátria . Não alimentava ilusões acerca de um resultado rápido , sem sacrifícios , talvez, insuperáveis. Voltou para a Alemanha em junho de 1852 , onde publicou um livro sobre a Colônia D. Francisca , advertindo os futuros emigrantes sobre os problemas que poderiam enfrentar em ambiente estranho e não se constrangeu em confessar : “ certo de que não emigrei com ilusões sobre a vida do emigrado, nem arrependido de, assim procedido, acabar desistindo” [15]
Em seguida os colonos criaram uma Comuna sem consultar a Diretoria da Sociedade que, ao ficar ciente do que ocorria , passou a agir em defesa dos seus interesses . A proposta da criação da comuna aprofundou os desentendimentos entre os colonos e a Direção . Além disso, o jogo político de cooptação produziu conflitos entre os próprios colonos . Um imigrante não identificado [16] , ao relatar o cotidiano da colônia não omitiu sua crítica :
“ Tudo ia muito bem e os impostos já tinham sido aprovados e expedidos. Mas a maravilha não durou muito tempo. A Direção , percebendo que a situação era séria, que a sociedade se insurgia fortemente contra a opressão que ela, fraudando o contrato , vinha exercendo , quando viu que a criança começava a crescer nos próprios pés e exigia seu direito – resolveu envidar todos esforços para dissolver a união perigosa .(...) Semeou com sucesso a discórdia entre os cinco conselheiros. Soube domesticar o presidente , um jovem honesto, tenho certeza, mas de caráter indeciso (...) “
Segundo seu relato , o Presidente do Conselho Comunal ( Sr. W. ) já cooptado pela direção, teria , à custa de um posto rendoso junto ao representante do Príncipe deJoinville, Sr. Aubé , colaborado na elaboração de uma mudança na Lei Fundamental estabelecida pelo Conselho popular e assinado , junto à Direção, um novo documento. Mais dois Conselheiros aderiram à direção, convencidos pelo Presidente ( Sr W. ) , o que gerou protestos dos conselheiros que continuavam fiéis ao projeto dos colonos. Na opinião daquele imigrante , a pequena política da colônia segue as práticas da terra natal . “ Os senhores depreenderão que atuamos aqui em uma Alemanha em miniatura. Fazemos discursos inflamados mas não agimos, latimos mas não mordemos “. A idéia de uma pátria melhor revelava-se cada vez mais distante.
Aos poucos vão ocorrendo inserções de outras instituições que apenas estavam se instalando na colônia , a Igreja por exemplo, que não ficou isenta deste processo . O Pastor da Igreja Evangélica Luterana no seu papel pacificador , defendeu o Sr. W. diante da coletividade, conseguindo que este fosse inocentado.
Finalmente , em janeiro de 1853 , após entendimento entre a Direção da Sociedade e os colonos , estabeleceu-se nova organização comunal sob a orientação da Direção e de Léonce Aubé, representante do Príncipe de Joinville . Os membros dessa Comuna apresentaram ao Presidente da Província um projeto da Lei Fundamental substituída, em 1855 , pela Sociedade dos Proprietários ( Verein der Grundbesite ) por sua vez substituída, em 1856 , pela “Comuna da Colônia “ ( Coloniegemeinde) , com novas posturas comunais .
A “Coloniegemeinde” tinha a incumbência de Conservar estradas, caminhos e pontes , com o dinheiro arrecadado na cobrança de impostos aos colonos. Segundo a organização da Comuna, a colônia foi dividida em distritos autônomos . Todos os representantes dos distritos formavam uma Corporação , a Vertreterschaft ou Procuradoria. Esta votava o Conselho Comunal que representou o poder legislativo até 1868, quando Joinville efetivou-se como município .
Constata-se, pois, que a colônia, para se estabelecer, desenvolveu um processo de organização política e administrativa relativamente rápido embora inicialmente buscasse modelos europeus. Tal organização deu-se em função de conflitos de interesses internos. Apesar das diferenças e acima das vontades particulares pairava um “guarda-chuva comum” , ou seja, a necessidade geral de uma base organizacional de enraizamento e pertencimento que os identificasse como um grupo de pessoas dispostas a levar adiante um projeto de vida .
No entanto , o processo de reterritorialização , ou seja, de legitimação do espaço étnico, apenas iniciava . Outros elementos e outros atores seriam necessários para sua continuidade .
OTTOKAR DOERFFEL
“(...) embaraçosa e desalentadora situação a nossa , quando – feito apátridas – não mais sabemos , por assim dizer, a quem pertencemos(...)” (Ottokar Deorffel )
Doerffel chegou à colônia em 1854 no navio Florentin, acompanhado de sua esposa Ida. Assim como o desembarque dos passageiros do “Gloriosa” trouxe mudanças no cotidiano da Colônia D.Francisca, o ingresso de Doerffel na vida comunitária da nascente colônia foi de relevância considerável .
Em 1854, a Colônia passava pelo processo de instituição da Comuna da Colônia que se debatia para instalar-se e possibilitar o prosseguimento da colonização . Foi um tempo estratégico, fundamental, para o estabelecimento das bases étnicas que exigiam mais do que a frágil “comunhão étnica “ . Havia a necessidade essencial de pertencimento sustentado pela idéia de ancestralidade .
Quando Doeffel chegou , a colônia colocava-se num estágio em que os conflitos de ordem material dos colonos eram fortemente abalados por aqueles de ordem psicológica , inerentes ao abandono da sua heimat e o estranhamento ante o meio ambiente brasileiro . Os imigrantes passavam por um doloroso processo de construção de uma nova identidade que se desenrolou a partir de uma experiência dualista, na contigência do convívio entre opostos , em duas dimensões, assim descritas por Valburga Huber [17]:
Espacial: Europa X América , Alemanha X Brasil; temporal: passado X futuro confluindo no presente; psicológica : dividido entre saudade e esperança ( Heimweh und Hoffnung ) ; filosófica: nova visão de mundo; existencial: nova maneira de sentir e viver as coisas; sociológica; novo grupo social e étnico; cultural: coexistência de usos, costumes e valores diferentes : latinos, germânicos e primitivos; econômica: modo de produção diferente; linguística: uma nova língua ( alemão híbrido) ; literária: literatura própria como expressão do seu “dualismo” .
Naquele momento os colonos da D. Francisca fincavam raízes num outro mundo, distante da velha Europa, um mundo que se organizava em ambiente exposto a uma cultura dominante à qual relutavam a aceitar , ao mesmo tempo em que não se sentiamm por ela acolhidos . Vejamos o que diz Ottokar Deorffel nos primeiros parágrafos do editorial da edição do número piloto “Kolonie Zeitung”, em dezembro de 1862. [18]
“ Pátria! Que sublime fascinação a deste nome, e ao pronunciá-lo, como se ergue, como se amplia o nosso peito – mas quantos sentimentos, para nós dolorosos, com ele se relaciona! A verdadeira Pátria, com suas suaves recordações de nossa juventude, com tudo aquilo que se nos tornou caro pela educação e pelo hábito do dia-a-dia - nós a deixamos; longe infinitamente longe se encontra ela atrás de nós, e provalvelmente dela estaremos separados para todo o sempre! E a nova Terra, na qual construímos o nosso lar e à qual ligamos toda a nossa existência? Esta nova Terra ainda não se tornou Pátria para nós. Ela parece ainda não querer nos aceitar como seus filhos e quanto mais profunda a afetividade com que a ela nos tentamos ligar, mais nos sentimos estranhamente repelidos, não raras vezes - e tanto mais impetuosa se reacende a saudade da velha e inesquecível Pátria – a Pátria que, na verdade, também já nos perdeu de vista e nos esqueceu. Realmente , embaraçosa e desalentadora situação a nossa, quando – feito apátridas – não mais sabemos, por assim dizer, a quem pertencemos ! (...)”
Ottokar Doerffel nasceu em 1818 em Waldenburg, então reino da Saxônia, Alemanha, e estudou ciências jurídicas em Leipzig, onde se formou em 1842. Sua biografia aponta o envolvimento nas agitações político-militares ocorridas na Saxônia em 1849, a exemplo dos movimentos de 1848 em vários países da Europa. Restabelecida a ordem, Doerffel teve de responder a rigoroso processo , fato este que o fez abandonar a pátria em 1854, vindo, então , para a recém-fundada Colônia Dona Francisca.
Desde o início participou da vida comunitária , já como tesoureiro e, mais tarde, como diretor interino da Colônia . Foi sócio co - fundador de quase todas as associações culturais , assistenciais e recreativas que foram surgindo . Torna-se importante mencionar , como agentes de etnicidade, as Associações Culturais surgidas ainda na década de 1850, nas quais Doerffel, junto com outras lideranças , teve atuação importante , tanto na fundação como nas atividades subsequentes. Essas associações recriaram, em ambiente brasileiro , as festas, o canto lírico e coral , as danças, o folclore , a arte dramática, o tiro ao alvo, a ginástica , nem sempre partilhadas por todos os imigrantes na Europa , em decorrência das diferentes regiões de origem e do nível sócio econômico e cultural. Na Colônia, no entanto, tais manifestações passaram a fazer parte da prática e da memória coletiva [19].
Em 1862 Doerffel fundou o “Kolonie Zeitung” , o jornal teuto-brasileiro mais antigo de Santa Catarina e até 1881 a única fonte de divulgação de informações nas colônias [20]. Não foi, portanto, um “colono” comum. . Dotado de intelectualidade e capacidade de mobilização comunitária , ao lembrar a pátria e as “suaves recordações da juventude” , do dia-a-dia na “verdadeira pátria”, evoca os laços de ancestralidade comum mesmo entre os imigrantes pobres que não trouxeram tão doces lembranças em sua bagagem . Naquele momento o laço inicial e comum a todos residia apenas no fato de terem emigrado do continente europeu e estarem vivenciando uma experiência em comum , o que os tornava menos diferentes . .
O Kolonie seguia uma linha bem definida : ao criar/inventar laços comuns de ancestralidade , manteve o sentimento de filiação à nacionalidade alemã, invocando oDeutschtum, o elo entre um povo e sua nação, ou seja, uma comunidade de interesses e uma cultura, raça e língua comuns - referenciadas como a “consciência nacional alemã”[21] .
Ainda no citado editorial , após lamentar o drama “dualista” do imigrante , Doerffel imprime idéias de positividade , sempre com base nas qualidades germânicas :
“ Mas não , caros leitores! Exatamente esta nossa situação poderá se tornar bastante feliz , se nós mesmos não falharmos (...) . Atuando contínua e persistentemente, de acordo com a nossa índole e o nosso espírito germânico, haveremos de conseguir também o respeito e o afeto da nova Pátria , tornando ainda mais feliz o nosso relacionamento com ela (...) “
Pelas letras e tintas do “Kolonie Zeitung” , subliminarmente negociava a reinvenção do espírito alemão . Os imigrantes aos poucos vão assumindo atitudes coletivas , num modelo oposto ao da assimilação que é “ passivo, inconsciente e individualista “[22] . Isso confere ao jornal um papel relevante neste processo que inclui reinvenção, incorporação, adaptação e ampliação das solidariedades comunais . A ancestralidade pode se construída, inventada mas , principalmente , ser articulada politicamente .
À medida que a colônia se desenvolvia , iniciava-se o inevitável relacionamento com as instituições brasileiras , quando os conflitos eram deslocados para a esfera nacional . Isso passa a ocorrer mais diretamente a partir de 1866 , quando pela Lei Provincial de 15 de março de 1866 , a Fregueisa de São Francisco Xavier de Joinville foi elevada à condição de vila . O artigo 3º desta lei criava o município de Joinville , determinando a construção de um prédio onde deveria ser instalada a Câmara Municipal . Esta exigência iniciou o processo “ involuntário” de integração da colônia ao sistema político e jurídico brasileiro , em virtude dos protestos da Vertreterchaft relativos ao pagamento de impostos prediais para o Governo Provincial. Assim, a execução da lei não se efetivou , e somente depois de dois anos de negociações entre as autoridades coloniais e provinciais , em março de 1868 , concretizou-se a elevação de Joinville a município .Em 1869 o recém instituído Município de Joinville elegeu seu primeiro prefeito , em conformidade com a legislação brasileira .
A análise dos três marcos objetivamente selecionados para este estudo demonstram que , embora inicialmente buscasse modelos europeus de organização comunal , a Colônia D. Francisca passou por um processo de organização política e social relativamente rápido . Tal organização teve por base uma identidade étnica baseada na idéia de ancestralidade e num projeto de vida em comum e também em razão de conflitos de interesses internos . Estes, se reavaliados , foram parte dinâmica da implementação do projeto de colonização , da sua organização social , e afirmação social e política da etnicidade , legitimando , assim , a relocalização de imigrantes germânicos em território brasileiro .
[1] Theodor Rodowicz-Oswiecinsky , militar prussiano e engenheiro geógrafo esteve em Joinville entre setembro de 1851 e junho de 1852. Deixou-nos valiosa crônica acerca de diversos aspectos da colônia e da colonização, não deixando de analisar minuciosamente os problemas inerentes à emigração . Fez questão de publicar seu trabalho já em 1853, em Hamburgo. Em 1992 foi publicado em português , com tradução de Júlio Chella, em Florianópolis, num esforço conjunto da Editora da UFSC e da Fundação Cultural de Joinville, sob o título "A Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil".
[2] Little, E. Paul . Espaço memória e ,imigração. Por uma teoria de reterritorialização. In: revista do Pós-Graduação em História da UNB.Vol. 2, número 4, 1994, p. 5 .
[3] Atual município de Joinville , situado no Nordeste de Santa Catarina.
[4] TRAMONTINI, Marcos Justo. Etnicidade e Política . In: Anais do XX simpósio da Associação Nacional de |História. Fronteiras: São Paulo/FLLCH/USP:ANPUH,1999.
[5] Tramontini propõe uma reavaliação das hipóteses de Amado, Willems e Roche, os quais conferem ao isolamento a determinação e a força que sugerem a formação de um grupo social impermeável à sociedade brasileira, que se organiza à revelia da sua estrutura administrativa, jurídica, econômica e social .
[6] CONZEN, et.al. The invention of etnicity: A Perspective from the USA. In: Journal of American History, Fall1992. Trad.Profa. Dra.Eunice Nodari.
[8] Rodowicz,Oswiecimsky, Theodor. A Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil , Hamburgo, 1853 .Trad. para o português de Júlio Chella . Florianópolis: Ed. Da UFSC, FCC; Joinville: FCJ,1992 . p.61
[9] Importante registrar que minha pesquisa sobre as profissões diverge daquela apresentada por Ficker em seu livro, História de Joinville à p. 103 , que é a seguinte: “ oito oficiais com grau de universidade, dois engenheiros diplomados, um médico , um doutor em Direito, dois candidatos a Teólogos , um professor de colégio , sete economistas, cinco comerciantes , dois naturalistas , um marceneiro, dois carpinteiros, um litógrafo, dois jardineiros, e 2 açougueiros, etc...’ É possível que por meio de outros documentos tenha descoberto a verdadeira profissão daqueles que entravam como lavradores .
[10] In: BÖBEL, Thereza e S.THIAGO, Raquel . Joinville – Os pioneiros : Documento e História ,
p.340/341
[11] Idem, ibidem.p.109
[12] Este empreendor foi Gustav Poschaan, acionista da Sociedade e filho de um membro da Direção da Colônia, conforme Ficker p.101 e da lista de imigrantes , impressa no livro : Joinville : Os Pioneiros – Documento e História de Böbel e S.Thiago p. 84 .
[13] FICKER, op.cit. p.104
[14] Rodowicz, op.cit.,p.107
[15] Idem, ibidem, prefácio.
[16] Jornal Geral da Emigração , 4 de janeiro de 1853 .Trad. de Thereza Böbel. In: Böbel , Thereza e S.Thiago, Raquel. Joinville –Os Pioneiros- Documento e História . Joinville: Ed. da Univille, 2001,p.87/93
[17] Uber, Valburga .Saudade e Esperança- O dualismo do Imigrante Alemão Refletido em sua
Literatura. Blumenau:Editora da Furb, 1993 p. 32.
[18] O “Kolonie Zeitung” fundado em 1862, foi o primeiro jornal impresso na Colônia D.Francisca,
por iniciativa de Ottokar Doerffel .
[19] Herkenhoff, Elly. Joinville – Nossos Prefeitos –1869-1903.Joinville: Fundação Cultural de
Joinville, 1984,p.23/24.
[20] Seyferth ,Giralda . Nacionalismo e Identidade Étnica p.49
[21] idem, ibidem p. 45
[22] conforme Conzen, op. cit.