Colônia D. Francisca - Fase pioneira (1851-1862)
Colônia D. Francisca - Fase pioneira (1851-1862)

ORGANIZAÇÃO SOCIAL , ETNICIDADE E POLÍTICA    DOS IMIGRANTES DA COLÔNIA D. FRANCISCA  NA FASE PIONEIRA (1851 – 1862)

 

                                                      Raquel S.Thiago *

 

“ Nós queremos emigrar . Esta é a grande frase com que se decidem os destinos de  inúmeras pessoas. Quantos antes de nós e quantos, após, selaram com isto seu destino? Quando a idéia de emigrar começa a criar raízes, é como tiririca, que é difícil de extirpar”

Rodowicz, 1853[1]

 

Introdução - O estudo da imigração germânica do século XIX  e o processo de relocalização dos imigrantes  em terras brasileiras, implica em tentar compreender os mecanismos da organização social  e  de  construção  da etnicidade. Neste particular, reporto-me a Paul Little que, ao explorar a área teórica e etnográfica das (i)migrações, localiza-a na  interseção de três conceitos: espaço, memória e migração . Diz ele:  

                “ Cada povo deslocado procura de uma ou de  outra forma criar sua relocalização no espaço. O processo de criar um espaço novo torna-se primordial, e se dá em parte pela manipulação múltipla e complexa coletiva no processo de ajustamento ao novo local"[2].                           

Tal pensamento reforçou minhas convicções de que seria possível realizar um estudo que contemplasse o “espaço construído” pelos imigrantes pioneiros da Colônia D.Francisca no curso da sua relocalização e o papel político dos sujeitos na manipulação da memória coletiva no processo de invenção/criação da etnicidade  [3].

 No estudo acerca da dinâmica política e social que teriam fundamentado a organização de caráter étnico dos imigrantes pioneiros da Colônia D.Franicisca sigo a proposta de Tramontini [4], que define a constituição de uma “comunidade étnica” ou a organização social com base étinica como uma fenômeno político. Esse autor prioriza o termo  “organização social com base étnica” em detrimento de “identidade étnica “ , pois para ele o grupo imigrante estudado ainda não erigira uma fala um discurso ou imagem de/sobre si próprio nem atribuíra legitimidades .

Tramontini ressalta a necessidade de reavaliação dos conflitos como parte dinâmica do projeto de colonização e como situação de organização social , em que a etnicidade assume clara afirmação social e política . Para ele, em contraposição a Willens, Amado e Roche,[5] a identidade étnica não se afirma isoladamente, mas surge da relação. Propõe, então, a hipótese do     relacionamento, da visualidades das diferenças, dos conflitos e dos intercâmbios na formação da “ comunidade étnica “.

          Neste trabalho, as situações de conflito restringem-se àqueles ocorridos no cotidiano da nascente colônia, já que no período estudado ainda não se estabelecera uma situação conflituosa com as instituições brasileiras. A Colônia estava, ainda,  na fase dos relacionamentos internos entre diferentes etnias .

            No cuidado com a coerência conceitual , sigo com                    Tramontini no emprego da concepção “weberiana” de grupo étnico.

No cuidado com a coerência conceitual, sigo com o mesmo autor, emprego na concepção “weberiana” de grupo étnico:

“a crença na afinidade de origem – seja objetivamente fundada ou não – pode ter conseqüências importantes particularmente para a formação de comunidades políticas . Como não se trata  de clãs, chamaremos grupos étnicos aqueles grupos humanos que em virtude de semelhanças  no habitus externo  ou nos costumes ou em ambos, ou em virtude de lembranças de colonização e migração, nutrem uma crença subjetiva na procedência comum, de tal modo que esta se torna importante para a propagação de relações comunitárias, sendo indiferente se existe ou não uma comunidade de sangue efetiva”. A comunhão ‘étnica’ distingue-se da ‘comunidade de clã’ pelo fato de aquela ser apenas produto de um ‘sentimento de comunidade ‘mas apenas um elemento que facilita relações comunitárias’. Fomenta relações comunitárias de naturezas diversas, mas sobretudo, conforme ensina a experiência, as políticas”.

 Os grupos de imigrantes pioneiros da Colônia D. Francisca. Estes não eram homogêneos: estavam divididos por sua origem regional, dialeto, classe, política e religião.  Assim, embates internos sobre a natureza da etnicidade emergente do grupo eram inevitáveis. Nesse caso, Conzen sugere a existência da necessidade de se reinventar tradições, cujos propósitos incluíam providenciar símbolos e ‘slogans’ que pudessem unificar o grupo, apesar de tais diferenças.[6]

Para o estudo proposto, selecionei três  marcos do início da vida colonial na D.Francisca : o primeiro deles é a chegada do navio “Gloriosa” em setembro de 1851 que, ao trazer boa parte de emigrantes cultos e abastados, promoveu transformações relevantes no cotidiano da Colônia; o segundo foi o processo  que estabeleceu a “Comuna da Colônia” (Coloniegemeinde ) entre 1851 e 1856, como resultado da necessidade de um instrumento normativo na vida colonial; o terceiro marco refere-se à chegada  de Ottokar Doerffel em 1854  e a fundação ,  em 1862,  do “Kolonie Zeitung”.

 

Os descaminhos do projeto de colonização . Fundada em 1851, a Colônia D.Francisca foi um empreendimento da  Companhia Colonizadora de Hamburgo, constituída por empresários interessados nos lucros decorrentes do transporte de passageiros e da colonização em terras brasileiras. Se na Alemanha a conjuntura urbana e rural de meados do século XIX  apontava para a emigração de parte de seu povo , num esforço de desafogá-la da pressão social advinda das péssimas condições de vida dos trabalhadores rurais e urbanos, no Brasil o interesse residia em suprir de braços as lavouras de café na Região Sudeste e povoar regiões estratégicas do Sul.  Como resultado da união dos interesses das duas nações, surgiu a Colônia D.Francisca, de caráter particular, empresarial, com a finalidade de assentar imigrantes em espaços desocupados do Sul do Brasil em regime de pequena propriedade. 

Trazidos pela Barca Colón  no início de março de 1851, os 118 imigrantes germânicos de diferentes regiões da Alemanha e  Suíça, principalmente, mais os 74 noruegueses desembarcados da Sumaca Glória dos Anjos, iniciaram o povoamento efetivo da Colônia. Fundada apenas um ano após à  vizinha  Colônia Dr. Blumenau, D.Francisca estava destinada  às atividades agrícolas. Esta primeira leva de imigrantes compunha-se principalmente pessoas pobres das zonas rurais e urbanas. Era essa a lógica inicial da política social de emigração apregoada na Alemanha, ou seja, incentivar a emigração dos mais pobres, para diminuir a oferta da mão-de-obra e facilitar a vida daqueles que ficavam, desafogando as pressões sociais.  

Os empresários hamburgueses planejaram estabelecer na D.Francisca uma grande colônia agrícola da América do Sul, e ao mesmo tempo um entreposto da Alemanha de produtos manufaturados , via porto de São Francisco do Sul. Em contrapartida, produtos agrícolas brasileiros seriam negociados com o Império Alemão. Alguns grupos de empresários arquitetavam planos a longo prazo, de formar, em terras do Sul do Brasil, um significativo mercado consumidor de produtos industrializados alemães. Tais consumidores seriam os imigrantes e seus descendentes.

No entanto, constatou-se que a agricultura não era o forte de grande parte daqueles que se inscreviam como emigrantes na condição de lavradores. Faziam-no apenas  no intuito de serem aceitos pela Sociedade Colonizadora. Como observou Magalhães[7] ao pesquisar a documentação sobre os primeiros imigrantes da Colônia D. Francisca, era significativa a existência de pelo menos quarenta profissões vinculadas ao meio urbano. “Marceneiros, alfaiates, sapateiros, mecânicos, açougueiros, cervejeiros, moleiros, padeiros, funileiros, tipógrafos e outros são atividades que exercem, entre 1852 e 1864, mais da metade dos imigrantes dessa colônia”.

Compreende-se, pois, que o  projeto agrícola de exportação, frustrou-se  quando foi constatado,  já de início, que a maioria dos colonos não trazia a  experiência necessária para a  agricultura dos trópicos,  ao ponto de Rodowicz observar que a Sociedade Colonizadora deveria empregar parte dos seus recursos  em diversas culturas, com a finalidade de ensinarem aos colonos   o processo correto de cada uma delas  pois, na sua opinião, a maioria dos colonos ainda se achava  na estaca zero, após um ano de ColôniaE se perguntava angustiado: “onde obter informações seguras, quando, sem experiência própria, todos andam às apalpadelas, no escuro?”[8]

         A tradição artesanal trazida por grande parte dos imigrantes, a inexperiência no trato dos produtos agrícolas brasileiros, mais as dificuldades apresentadas pelo terreno ainda coberto pela mata virgem, além da umidade do solo, faziam com que o trabalho da terra fosse desviado, de boa vontade a segundo plano por boa parte dos colonos.  Eis o depoimento do imigrante Christian Herrmann, contido numa extensa carta enviadas aos parentes suíços em 1851:

“(...) como colono recém-chegado, somente plantei até agora algumas batatas, feijão e cenouras. Fiquei doente por algum tempo e para não perder tempo, montei defronte à minha morada um tôrno e um banco de marceneiro e atendi todos os serviços do ramo da minha profissão. Oh, se eu tivesse comigo as ferramentas que tinha na Suíça, como ganharia dinheiro! (...)

Se estancássemos a história neste início de colonização, certamente o espaço onde hoje se situa cidade de Joinville, não seria o mesmo. A Colônia, estava fadada ao fracasso. Ao examinar a lista dos imigrantes da Barca Colón, constatei que, dos 118 que desembarcaram, 19 fugiram ou foram embora para Curitiba e Paranaguá, 20 morreram, entre 1851 e 1855 e 3 foram mandados embora.

Deduz-se pois, que, inicialmente, na colônia  permaneceram os mais pobres de um lado, e de outro os abastados ou meio abastados, membros da administração da colônia, técnicos, como agrimensores, engenheiros, o médico, o pastor, o padre, o farmacêutico e, por fim, aqueles poucos que, apesar de poderem optar por uma  vida melhor  em  cidades grandes, acreditavam  no empreendimento colonizador e num futuro próspero . 

 

O GLORIOSA 

A intenção era brilhar e ostentar em todas as direções , fazer da D.Francisca (...) a principal colônia do reino, de Joinville o centro da inteligência da vida social .                                                                                                      ( Von Tschudi)

     

A chegada do navio “Gloriosa”, em 27 de setembro de 1851, promoveu o aparecimento de fatores que fizeram emergir  a necessidade  de mecanismos que garantissem  alguma ordem na colônia. Os 77 imigrantes do Gloriosa elevaram a população da Colônia  de 260  para 337 pessoas.  Ao analisar a lista dos imigrantes deste navio , verifiquei que entre estes havia significativo grupo de pessoas abastadas, de status social e cultural  diferenciado:  três militares, um marceneiro, um médico, três  naturalistas, dois professores , um teólogo, um candidato a teólogo,  um comerciante ,  dois açougueiros e um engenheiro -geógrafo militar[9].

No Gloriosa  chegaram, também,  quatro acionistas da Sociedade Colonizadora, entre eles  o  novo Inspetor da Colônia  Dr. Johan Adolph Haltenhoff, sua mulher Dorette e as três filhas, Marie, Anna e Louise. Na colônia, Anna se casou com Léonce Aubé, francês e procurador do Príncipe de Joinville; Marie, com Friedrich Heeren, acionista da Sociedade Colonizadora de Hamburgo e parente do Senador Christian Mathias Schroeder, principal acionista da empresa ; Louise se casou com  Otto Niemeyer, militar do dissolvido exército de Schleswig-Holstein e igualmente acionista da Sociedade  Colonizadora. Tais relações acabaram formando um verdadeiro clã familiar no domínio dos negócios da colonização.

Este grupo que Tchudi[10] chamou de “oligárquica falange de concunhados”,  no  seu dizer,  

 “formou  um conluio, sob a direção de um só homem ( Aubé) (...)  e cujo domínio, durante vários anos, não trouxe benefícios à Colônia. A intenção era brilhar e ostentar em todas as direções, fazer da D.Francisca, a todo custo, a principal colônia do reino, de Joinville o centro da inteligência  e vida social, empenhando-se  muito mais nesse sentido do que em atender  aos reais interesses da Colônia . (...)

 Prossegue Tschudi:

 “Asseguram-me com toda a seriedade  que, nos primeiros anos era preferível emprestar dinheiro a um colono para a compra de um fraque do que para obtenção de um moinho de mandioca . Mesmo que não tomemos esta informação ao pé da letra, mas como ironia, ela espelha bem o rumo  que se tomou em D.Francisca. O fato é que a  vida em Joinville era muito alegre e animada, que ali não faltavam bailes e diversões e que se dava muito mais importância ao brilho  das aparências do que seria sensato em uma colônia agrícola”.

 Os  bailes, por ele observados  e  regados por  bordeaux e champagne e iluminados  por   velas de estearina , certamente não eram freqüentados  pelos mais  pobres , tornando visíveis os privilégios .  Tudo isso teria trazido insatisfações e conflitos  que ,  no processo , deveriam ser negociados .  Essa situação comprometia , em parte, a viabilidade da edificação de uma comunidade distante – um oceano – das suas pátrias.        Rosowicz foi um dos primeiros a registrar  as transformações do cotidiano  da colônia  em conseqüência da chegada  do “Gloriosa”: 

  “ (...) a abertura de botequins e salões de bailes começaram a produzir seus efeitos .  Excessos noturnos e outros  faziam lembrar que, de qualquer forma , era necessário  elaborar e estabelecer leis e criar  poderes que freassem desordens que estavam aumentando . ( ...)  além da existência  de reduzido grupo  de preguiçosos, relapsos e caloteiros “ . Não  há ,  qualquer espécie de força coercitiva  ou coisa semelhante que, reconhecida coletivamente,  imponha autoridade “  .[11] 

 Ficker estabelece ligação desse fato como o advento da relação empregador e empregado , e dos seus desdobramentos , ou seja,  a  possibilidade de melhor remuneração  da mão-de-obra  pelos endinheirados aos colonos pobres, em virtude do aumento da população.  A escassez de  mão-de-obra , naquele momento ,   aumentava o seu preço , levando-o a concluir que  o dinheiro na mão do homem do campo aumentava o consumo de álcool  aos domingos e dias santificados, de maneira que passavam o dia conversando e bebendo. “ . Não se pode desprezar o fato de que no Gloriosa chegou  Gustav Poschaan , o primeiro empreendedor agrícola da Colônia  , o que teria  criado bom número de empregos   . [12]

        O Gloriosa , assim como trouxe dinheiro novo, conhecimento e pessoas de nível social mais elevado, trouxe, também, certa dose de sofrimento: uma epidemia de disenteria  e tifo intestinal desembarcou com seus passageiros, alastrando-se na Colônia. Não havia, ainda enfermeiros, e o hospital , embora tivesse sido construído, fora ocupado  para moradia. . Em apenas 1 mês ( setembro de 1851), faleceram 16 pessoas.

          Aumentava ,  assim ,  a  insegurança dos colonos ,  já por terem de enfrentar ambiente   desconhecido e a ele ter que adaptar-se , já  por  desconhecerem o português , o que  certamente desarmonizava o ambiente colonial . Em junho de 1852 , ânimos exaltados causaram tumulto na Casa de Recepção, onde “houve troca de insultos, sopapos  e desentendimentos “ , apesar da existência de um regulamento que, em 7  itens , estabelecia  as obrigações e os deveres dos imigrantes durante sua curta permanência na casa. Esta regulamentação  teria sido  a primeira experiência normativa , a primeira lei sancionada  por autoridade na Colônia D.Francisca. [13]

        Por outro lado,  a Sociedade Colonizadora tentava garantir o sucesso do seu empreendimento e tais episódios impunham  negociações entre os imigrantes comuns e entre estes e aqueles que ocupavam um lugar  mais alto na hierarquia econômica e social , os administradores da colônia e  suas famílias .  Somente mais tarde surgiram claramente  os conflitos provenientes  da necessidade de adequação e cumprimento às normas do  sistema jurídico econômico e político brasileiro. 

 

    A COMUNA DA COLÔNIA

 

“ Assim terminamos na Europa,

assim começaremos no Brasil”

( Rodowicz)

 

Em novembro de 1851, a Direção da Colônia tentou fundar uma “comuna” que fizesse valer os regulamentos pelos quais deveria pautar-se a vida comunal.. Um projeto foi apresentado aos colonos, mas o debate  acabou tomando um rumo indesejado pelos diretores. Conforme comenta Rodowicz  ,

 

“ uns exigiam o exame dos documentos , outros pediam cópia , ainda outros  alegavam que tanto tempo já tendo passado sem estes estatutos, eram eles  dispensáveis (....) A reunião dissolveu-se sem que os estatutos fossem aprovados. A idéia  da criação de uma comuna voltou ao marco zero . Discursos e  escrivinhações (sic)  somente  , nada de ação”   .  E se alguma vez se chegar a ela, então sempre dentro daquela velha forma , indiferente, se o pé cabe ou não lá dentro. Assim terminamos na Europa, assim começaremos no Brasil [14] .

 

Rodowicz estava convencido  que o sonhada “Nova Alemanha”  incluía heranças indesejáveis da velha pátria . Não alimentava ilusões acerca de um resultado rápido , sem sacrifícios , talvez, insuperáveis. Voltou para a Alemanha em junho de 1852 , onde publicou  um livro sobre a Colônia D. Francisca , advertindo os futuros emigrantes  sobre os problemas  que poderiam enfrentar  em ambiente estranho  e não se constrangeu em confessar  : “ certo de que não emigrei com ilusões sobre a vida do emigrado, nem  arrependido de, assim procedido, acabar desistindo” [15]

        Em seguida os colonos criaram uma Comuna sem consultar a Diretoria da Sociedade que, ao ficar ciente do que ocorria , passou a agir  em  defesa dos seus interesses .  A proposta da criação da comuna  aprofundou os desentendimentos    entre os colonos e a Direção  . Além disso, o jogo político  de cooptação produziu conflitos entre os próprios colonos . Um imigrante não identificado [16] , ao relatar  o cotidiano da colônia não omitiu sua crítica  :

 

“ Tudo ia muito bem  e os impostos já tinham sido aprovados e expedidos. Mas a maravilha não durou muito tempo. A Direção , percebendo que a situação era séria, que a sociedade se insurgia fortemente contra a opressão que ela, fraudando o contrato  , vinha exercendo , quando viu que a criança começava a crescer nos próprios pés e exigia seu direito – resolveu envidar todos esforços para  dissolver a união perigosa .(...)  Semeou com sucesso a discórdia  entre os cinco conselheiros. Soube domesticar o presidente , um  jovem honesto, tenho certeza, mas de caráter indeciso (...) “ 

Segundo seu relato , o Presidente do Conselho Comunal ( Sr. W. ) já cooptado pela direção, teria , à custa de um posto rendoso junto ao representante do Príncipe deJoinville, Sr. Aubé , colaborado na elaboração  de uma mudança na  Lei Fundamental estabelecida pelo Conselho popular e  assinado  , junto à Direção, um novo documento. Mais dois Conselheiros aderiram à direção, convencidos pelo   Presidente ( Sr W. ) , o que gerou  protestos  dos conselheiros que continuavam fiéis ao projeto dos colonos. Na opinião daquele imigrante ,  a pequena política  da colônia  segue  as práticas da  terra natal . “ Os senhores   depreenderão que  atuamos aqui em uma Alemanha em miniatura. Fazemos discursos inflamados mas não agimos, latimos mas não mordemos “. A idéia de uma pátria melhor revelava-se cada vez mais distante.

Aos poucos vão ocorrendo inserções de outras  instituições que apenas estavam  se instalando na colônia , a  Igreja por exemplo, que  não ficou  isenta deste processo . O Pastor da Igreja Evangélica Luterana  no seu papel pacificador  , defendeu o Sr. W. diante da coletividade, conseguindo que este fosse inocentado.

Finalmente , em  janeiro de 1853 , após entendimento entre a Direção da Sociedade  e  os colonos , estabeleceu-se  nova organização comunal sob a orientação da Direção e de Léonce Aubé, representante do Príncipe de Joinville . Os membros dessa Comuna apresentaram   ao Presidente da Província  um projeto da  Lei  Fundamental substituída, em 1855 ,  pela  Sociedade dos Proprietários  ( Verein der Grundbesite ) por sua vez substituída, em 1856 , pela  “Comuna da Colônia “ ( Coloniegemeinde) , com novas posturas comunais  .

A “Coloniegemeinde” tinha a incumbência de Conservar estradas, caminhos e pontes , com o dinheiro arrecadado na cobrança de impostos aos colonos. Segundo a organização da Comuna, a colônia  foi dividida em distritos  autônomos . Todos os representantes dos distritos formavam uma Corporação , a Vertreterschaft ou Procuradoria. Esta votava o Conselho Comunal que representou o poder legislativo até 1868, quando Joinville efetivou-se como município .

Constata-se, pois, que a colônia, para se estabelecer, desenvolveu um processo de organização política e administrativa relativamente rápido embora inicialmente buscasse modelos europeus. Tal organização deu-se em função  de conflitos de interesses internos. Apesar das diferenças  e  acima das vontades particulares pairava um “guarda-chuva comum” ,  ou seja,  a   necessidade geral  de uma base organizacional de enraizamento e pertencimento que os identificasse como um grupo de pessoas dispostas a levar adiante um projeto de vida .

No entanto , o processo de reterritorialização , ou seja, de legitimação do espaço étnico,   apenas iniciava . Outros elementos e outros atores seriam necessários para sua continuidade .

 

OTTOKAR DOERFFEL

 

“(...) embaraçosa e desalentadora situação a nossa , quando – feito apátridas – não mais sabemos , por assim dizer, a quem pertencemos(...)”               (Ottokar Deorffel )

 

Doerffel chegou à colônia em 1854 no navio Florentin, acompanhado de sua esposa Ida. Assim como o desembarque dos passageiros do “Gloriosa”  trouxe mudanças no cotidiano da Colônia D.Francisca, o ingresso de Doerffel na vida comunitária da nascente colônia foi de  relevância considerável .

Em 1854,  a Colônia  passava pelo processo de instituição da Comuna da Colônia   que se debatia para instalar-se e possibilitar o prosseguimento da colonização . Foi um tempo estratégico, fundamental, para o estabelecimento das bases étnicas  que exigiam mais do que a frágil “comunhão étnica “  .  Havia  a necessidade essencial de pertencimento   sustentado pela idéia de   ancestralidade  .

 Quando Doeffel chegou ,  a colônia colocava-se num estágio  em que   os conflitos de ordem material dos colonos  eram fortemente  abalados por  aqueles  de ordem psicológica , inerentes ao  abandono da sua heimat  e o estranhamento ante o meio ambiente brasileiro . Os imigrantes passavam por um doloroso processo de construção de uma nova identidade que se desenrolou  a partir de uma  experiência dualista, na contigência do convívio entre opostos , em duas dimensões,  assim descritas por Valburga Huber [17]:

  Espacial: Europa X América , Alemanha X Brasil; temporal: passado X futuro confluindo no presente; psicológica : dividido entre saudade e esperança ( Heimweh und Hoffnung ) ; filosófica: nova visão de mundo; existencial: nova maneira de sentir e viver as coisas; sociológica; novo grupo social e étnico; cultural: coexistência  de usos, costumes e valores diferentes : latinos, germânicos e primitivos; econômica: modo de produção diferente; linguística: uma nova língua ( alemão híbrido) ; literária: literatura própria  como expressão do seu “dualismo” .

Naquele momento os colonos da D. Francisca   fincavam   raízes  num outro mundo, distante da velha Europa,  um mundo que se organizava  em ambiente exposto a uma cultura dominante à qual relutavam a aceitar , ao mesmo tempo em que não se sentiamm por ela acolhidos .  Vejamos o que diz    Ottokar Deorffel  nos primeiros parágrafos do editorial da  edição do número piloto  “Kolonie Zeitung”, em dezembro de 1862.  [18]

 

    “ Pátria! Que sublime fascinação a deste nome, e ao pronunciá-lo, como se ergue, como se amplia o nosso peito – mas quantos sentimentos, para nós dolorosos, com ele se relaciona! A verdadeira Pátria, com suas suaves recordações de nossa juventude, com tudo aquilo que se nos tornou caro pela educação e pelo hábito do dia-a-dia  - nós a deixamos; longe infinitamente longe se encontra ela atrás de nós, e provalvelmente dela estaremos separados para todo o sempre! E a nova Terra, na qual construímos o nosso lar e à qual ligamos toda a nossa existência? Esta nova Terra ainda não se tornou Pátria para nós. Ela parece ainda não querer nos aceitar como seus filhos e quanto mais profunda  a afetividade com que  a ela nos tentamos ligar, mais nos sentimos estranhamente repelidos, não raras vezes - e tanto  mais impetuosa  se reacende a saudade da velha e inesquecível Pátria – a Pátria que, na verdade, também já  nos perdeu de vista e nos esqueceu. Realmente , embaraçosa e desalentadora situação a nossa, quando – feito apátridas – não mais sabemos, por assim dizer, a quem pertencemos ! (...)”

          Ottokar Doerffel nasceu  em 1818 em Waldenburg, então reino da Saxônia, Alemanha, e estudou ciências jurídicas em Leipzig, onde se formou em 1842. Sua biografia aponta o envolvimento nas agitações político-militares ocorridas na Saxônia em 1849, a exemplo  dos movimentos de 1848  em vários países da Europa. Restabelecida a ordem, Doerffel teve de responder a rigoroso processo , fato este que o fez abandonar a pátria em 1854, vindo, então , para a recém-fundada Colônia Dona Francisca.

          Desde o início participou da vida comunitária , já como tesoureiro e, mais tarde, como diretor interino da Colônia . Foi sócio  co - fundador de quase todas as associações culturais , assistenciais e recreativas que foram surgindo . Torna-se importante mencionar  , como agentes de etnicidade, as Associações Culturais surgidas ainda na década de 1850, nas quais Doerffel, junto com outras lideranças , teve atuação importante , tanto na  fundação como nas atividades subsequentes. Essas associações recriaram, em ambiente brasileiro  , as festas, o canto lírico e coral , as danças, o folclore , a arte dramática, o tiro ao alvo, a ginástica , nem sempre partilhadas por todos  os imigrantes na Europa , em decorrência  das diferentes regiões de origem e do nível sócio econômico e cultural. Na Colônia, no entanto, tais manifestações  passaram a fazer parte da prática e da memória coletiva [19].

 Em  1862 Doerffel fundou   o  “Kolonie Zeitung”  , o jornal teuto-brasileiro mais antigo de Santa Catarina e até 1881  a única fonte de divulgação de informações  nas colônias [20].  Não foi, portanto,  um “colono” comum. .  Dotado de intelectualidade e capacidade de mobilização comunitária ,  ao lembrar a pátria  e as “suaves recordações da juventude” , do dia-a-dia  na “verdadeira pátria”, evoca os laços de ancestralidade comum mesmo entre os imigrantes pobres  que não  trouxeram tão doces lembranças  em sua bagagem  . Naquele momento  o laço inicial e comum a todos  residia apenas no fato de terem emigrado do continente europeu e estarem vivenciando uma experiência em comum , o que os tornava menos diferentes . .

 O Kolonie seguia  uma linha bem definida : ao criar/inventar  laços comuns de ancestralidade  , manteve  o sentimento de filiação à nacionalidade alemã, invocando   oDeutschtum, o elo entre um povo e sua nação, ou seja, uma comunidade de interesses e uma cultura, raça e língua comuns -   referenciadas como a “consciência nacional alemã”[21] .

 Ainda no citado editorial , após  lamentar o drama “dualista” do imigrante , Doerffel  imprime idéias de positividade , sempre com base nas qualidades  germânicas :

 “ Mas não , caros leitores! Exatamente esta nossa situação poderá se tornar bastante feliz , se nós mesmos não falharmos (...) . Atuando  contínua e persistentemente, de acordo com a nossa índole e o nosso espírito germânico, haveremos de conseguir também o respeito e o afeto da nova Pátria , tornando ainda mais feliz o nosso relacionamento com ela (...) “

Pelas  letras e tintas do “Kolonie Zeitung” , subliminarmente negociava  a reinvenção   do espírito alemão .  Os imigrantes aos poucos vão assumindo atitudes coletivas  , num modelo oposto ao da  assimilação que é   “ passivo, inconsciente e individualista “[22]  . Isso confere ao jornal  um papel relevante  neste processo que inclui reinvenção, incorporação, adaptação e ampliação das solidariedades comunais . A ancestralidade pode se construída, inventada  mas  , principalmente , ser articulada politicamente . 

À medida que a colônia se desenvolvia , iniciava-se  o inevitável  relacionamento com as instituições brasileiras , quando os conflitos eram deslocados para a esfera  nacional . Isso  passa a ocorrer mais diretamente a partir de 1866 , quando  pela  Lei Provincial de 15 de março de 1866 , a Fregueisa de São Francisco Xavier de Joinville foi elevada à condição de vila  . O artigo  3º desta lei  criava o município de Joinville  , determinando  a construção de um prédio onde deveria  ser instalada a Câmara Municipal . Esta  exigência iniciou o processo “ involuntário”   de integração  da colônia   ao sistema político e jurídico brasileiro , em virtude dos protestos  da Vertreterchaft  relativos ao pagamento de impostos  prediais para o Governo Provincial. Assim, a execução da lei não se efetivou , e somente depois de dois anos de  negociações  entre as autoridades  coloniais e provinciais , em março de 1868 , concretizou-se a elevação de Joinville a município .Em   1869  o  recém instituído Município de Joinville elegeu seu primeiro prefeito ,  em  conformidade com  a legislação brasileira . 

A análise dos três marcos objetivamente selecionados para este estudo demonstram  que  , embora inicialmente buscasse modelos europeus de organização comunal  , a Colônia D. Francisca  passou por  um processo de organização política  e social relativamente rápido .   Tal organização teve por base uma   identidade  étnica baseada na idéia de ancestralidade e num projeto de vida em comum e também em razão  de conflitos de interesses internos  . Estes, se reavaliados , foram parte dinâmica da implementação do projeto de colonização , da sua organização social , e afirmação social e política da etnicidade  , legitimando , assim  , a  relocalização de imigrantes germânicos   em território brasileiro . 

 


[1] Theodor Rodowicz-Oswiecinsky , militar prussiano e engenheiro geógrafo esteve em Joinville entre setembro de 1851 e junho de 1852. Deixou-nos valiosa crônica acerca de diversos aspectos da colônia e da colonização, não deixando de analisar minuciosamente os problemas inerentes à  emigração . Fez questão de publicar seu trabalho já em 1853, em Hamburgo.  Em 1992  foi publicado em português , com tradução de Júlio Chella,  em Florianópolis, num esforço conjunto da Editora da UFSC e da Fundação Cultural de Joinville, sob o título  "A Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil".

[2] Little,  E. Paul . Espaço  memória e ,imigração. Por uma teoria de reterritorialização. In: revista do Pós-Graduação em História da UNB.Vol. 2, número 4, 1994, p. 5 .

[3] Atual município de Joinville , situado no Nordeste de Santa Catarina.

[4] TRAMONTINI, Marcos Justo. Etnicidade e Política . In: Anais do XX simpósio da Associação Nacional de |História. Fronteiras: São Paulo/FLLCH/USP:ANPUH,1999.

[5]  Tramontini propõe uma reavaliação das hipóteses de Amado, Willems e Roche, os quais conferem ao isolamento a determinação e a força que sugerem a formação  de um grupo social  impermeável à sociedade brasileira, que se organiza à revelia da sua estrutura administrativa, jurídica, econômica e social .

[6] CONZEN, et.al. The invention of etnicity: A Perspective from the USA. In: Journal of American History, Fall1992. Trad.Profa. Dra.Eunice Nodari.

 

[8] Rodowicz,Oswiecimsky, Theodor. A Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil  , Hamburgo, 1853 .Trad. para o português de Júlio Chella . Florianópolis: Ed. Da UFSC, FCC; Joinville: FCJ,1992 . p.61

 

[9] Importante registrar que minha pesquisa sobre as profissões diverge daquela apresentada por Ficker  em seu livro, História de Joinville  à p. 103 , que é a seguinte: “ oito oficiais com grau de universidade, dois engenheiros  diplomados, um médico , um doutor em Direito, dois candidatos a Teólogos , um professor de colégio , sete economistas, cinco comerciantes , dois naturalistas , um marceneiro, dois carpinteiros, um litógrafo, dois  jardineiros, e 2 açougueiros, etc...’ É possível que por meio de outros documentos tenha descoberto a verdadeira profissão daqueles que entravam como lavradores .

 

[10] In: BÖBEL, Thereza e S.THIAGO, Raquel . Joinville – Os pioneiros : Documento e História ,

p.340/341

[11] Idem, ibidem.p.109

[12] Este empreendor  foi Gustav Poschaan, acionista da Sociedade e filho de um membro da Direção da Colônia, conforme Ficker p.101  e  da lista de imigrantes , impressa no livro : Joinville : Os Pioneiros – Documento e História  de Böbel e S.Thiago p. 84 .

[13] FICKER, op.cit. p.104

[14] Rodowicz, op.cit.,p.107

[15] Idem, ibidem, prefácio.

[16] Jornal Geral da Emigração , 4 de janeiro de 1853  .Trad. de Thereza Böbel. In: Böbel , Thereza e S.Thiago, Raquel. Joinville –Os Pioneiros- Documento e História . Joinville: Ed. da Univille, 2001,p.87/93

[17] Uber, Valburga .Saudade e Esperança- O dualismo do Imigrante Alemão Refletido em sua

Literatura. Blumenau:Editora da Furb, 1993 p. 32.

[18] O “Kolonie Zeitung”  fundado em 1862,  foi o primeiro jornal impresso na Colônia D.Francisca,

por iniciativa de Ottokar Doerffel .

[19] Herkenhoff, Elly. Joinville – Nossos Prefeitos –1869-1903.Joinville: Fundação Cultural de  

Joinville, 1984,p.23/24.

[20] Seyferth ,Giralda . Nacionalismo e Identidade Étnica p.49

[21] idem, ibidem  p. 45

[22] conforme Conzen, op. cit.